De nosso amor e loucura...

Alguns de nós, eu inclusive, já vimos acalentando a ideia de criar este blog. Fazemos, de certo, parte de um grupo que não se entende como apenas professor, pessoas que criam contos, crônicas, novelas e têm receios de expor suas produções. Somos loucos... loucos pelo ócio mais trabalhoso que existe: escrever Utilizamos as palavras de Clarice Lispector para definir nossa loucura... "Escrevemos porque somos desesperados e estamos cansados, não suportamos mais a rotina de nos ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, nós nos morreríamos simbolicamente todos os dias."

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Misantropo

                                                                                                             
“Sei que vivo em um mundo de fantasias;  mas também prefiro que assim seja                                                                                                                              e me irrito com tudo o que perturba minha visão. A vida real não me interessa.                                                                                                                                       Gosto de observá-la, mas, no fundo apenas para dar rédeas soltas                                                                                                                                              a minha fantasia. Expresso profunda confiança na fantasia...” 
FEDERICO FELLINI.
                                                                                                               

Conheço-o há quase sessenta anos, vida inteira a observá-lo, tolerá-lo, irritá-lo e aplaudi-lo. Ele já foi diferente, já foi tolerante com quem não lhe professasse a fé, ou a ausência dela; quem com ele conseguia partilhar os descaminhos e os subterrâneos que sempre habitou divertiu-se e o execrou. O outro se sentia partilhando, mas ele estava sempre sozinho. Sozinho. Eu percebia que havia quem desejasse com ele se aventurar, mas sua rejeição era sempre iminente e silenciosa, não era necessário, nem possível dizê-la. E lá ia ele, feliz e sozinho, a curtir um, a desdenhar de outro e a se divertir, muito, naquele mundo povoado apenas por ele. Já o vi a chorar saudade. Crês? Mais gente viu! Já o vi a escrever cartas de amor, a fazer plantão às 6h da manhã só para ver passar um certo olhar sanpako que teimava em desdenhá-lo.
Como envelhecemos todos e, neste caso, confortavelmente juntos, fica simples, fica fácil entendê-lo. Quando se é jovem, o outro é importante demais, parece que a felicidade desejada vem de lá, do outro, nunca de dentro de nós. Quando já não se tem juventude, nada está no outro, até pode vir algo de lá, mas não é possível contar com isso. Lágrimas e cartas de amor, saudade, mesmo que pouca, passam a coisas do passado.
Falando em saudade pouca, lembro quando tínhamos menos de cinco anos e saíamos para curtas temporadas de férias num engenho de açúcar. Eu penando saudade de tudo; de minha cama, meu leite quente, da luz na janela ao acordar, os passos de minha mãe no corredor... Ele? Instado por mim, até comentava uma pena aqui, outra acolá, mas logo emendava: vamos subir no pé de azeitona! atirar pedras aos porcos no chiqueiro, espiar quem toma banho pelado no rio...
Havia alguns traços que nele se sobressaíam e me enchiam de admiração: ele topava todas as paradas. Até catar as brasas que caíam da maria-fumaça que transportava a cana colhida e a levava para a usina. Queimávamo-nos com aquela brasa, mas era lindo ver como ela brilhava vermelha quando a tínhamos na mão e a assoprávamos; ele era capaz de contar tudo o que via e vivia, tudo com detalhes miúdos a nosso tio quando ele nos perguntava: - que andaram fazendo hoje? Se lhe deixassem, era capaz de contar até que ao cavalo do capataz faltava uma ferradura.
Chegou o tempo em que já não podíamos contar tudo aos outros. Só podíamos ver, viver e guardar, sabe-se lá para quando possível fazer o quê! Acompanhei-o em suas incursões ao subterrâneo, mudava-me com ele para lá constantemente; enquanto isso, tornava-se cada vez mais difícil gostar do que não estava lá, a menos que fossem histórias, que fossem fantasias, que fossem ao menos fotos, ou até diálogos espreitados do alheio, mesmo que fossem coisas incompreensíveis; mais uma vez, quem sabe, para guardar na parede da memória e poder um dia ir lá buscar e usar de alguma forma...
Hoje, ele parece sentir-se bem eliminando aqueles que um dia lhe estiveram por perto. “Arre”, costuma dizer, “por que pai e mãe vivem tanto?! E irmão e irmã, têm mesmo que ficar a ciscar por perto a querer saber de tudo, a querer ajudar, a visitar? E os amigos parecem pensar que a disponibilidade que não cobro é a que devo dedicar”. Antes de ver o belo e o agradável, elege o feio. Parece só ter olhos para aquilo que destoa, que não combina, que não casa; mesmo assim, ainda lhe admiro um senso de humor ferino, cáustico e uma rejeição assumida à miséria vocabular alheia que me chama as risadas; uma franqueza rascante que só após uns meses o alvo terá conseguido assimilar. E perdoar. Fácil reconhecer-lhe momentos de brilhantismo, mormente quando escreve, mas nunca fui capaz de lhe perdoar o menosprezo.
Nenhum amigo histórico, daqueles capazes de fazer perguntas antigas... aliás, perguntas antigas são o seu nome; sua memória, por vezes constrangedora, aética e despudorada atrai revides  nunca compreendidos.
Quando os sessenta anos sobrevêm, é impossível manter-se longe de manias, arrufos e antipatias. Magoar sim; desculpar-se, difícil. Chegar aos sessenta sem um amor histórico, sem testemunhos vivos e verdadeiros é como esconder-se para sempre sob a carapaça que se vai vestindo aos poucos e que, de repente, já não pode ser retirada...                  


Oswaldo Lucas-Jr
30 nov 2012