“Sei
que vivo em um mundo de fantasias; mas
também prefiro que assim seja
e
me irrito com tudo o que perturba minha visão. A vida real não me interessa.
Gosto de observá-la, mas, no fundo apenas
para dar rédeas soltas
a minha fantasia. Expresso
profunda confiança na fantasia...”
FEDERICO FELLINI.
Conheço-o há quase sessenta
anos, vida inteira a observá-lo, tolerá-lo, irritá-lo e aplaudi-lo. Ele já foi
diferente, já foi tolerante com quem não lhe professasse a fé, ou a ausência dela;
quem com ele conseguia partilhar os descaminhos e os subterrâneos que sempre
habitou divertiu-se e o execrou. O outro se sentia partilhando, mas ele estava
sempre sozinho. Sozinho. Eu percebia que havia quem desejasse com ele se
aventurar, mas sua rejeição era sempre iminente e silenciosa, não era
necessário, nem possível dizê-la. E lá ia ele, feliz e sozinho, a curtir um, a
desdenhar de outro e a se divertir, muito, naquele mundo povoado apenas por
ele. Já o vi a chorar saudade. Crês? Mais gente viu! Já o vi a escrever cartas
de amor, a fazer plantão às 6h da manhã só para ver passar um certo olhar
sanpako que teimava em desdenhá-lo.
Como envelhecemos todos e, neste
caso, confortavelmente juntos, fica simples, fica fácil entendê-lo. Quando se é
jovem, o outro é importante demais, parece que a felicidade desejada vem de lá,
do outro, nunca de dentro de nós. Quando já não se tem juventude, nada está no
outro, até pode vir algo de lá, mas não é possível contar com isso. Lágrimas e
cartas de amor, saudade, mesmo que pouca, passam a coisas do passado.
Falando em saudade pouca, lembro
quando tínhamos menos de cinco anos e saíamos para curtas temporadas de férias
num engenho de açúcar. Eu penando saudade de tudo; de minha cama, meu leite
quente, da luz na janela ao acordar, os passos de minha mãe no corredor... Ele?
Instado por mim, até comentava uma pena aqui, outra acolá, mas logo emendava:
vamos subir no pé de azeitona! atirar pedras aos porcos no chiqueiro, espiar
quem toma banho pelado no rio...
Havia alguns traços que nele
se sobressaíam e me enchiam de admiração: ele topava todas as paradas. Até
catar as brasas que caíam da maria-fumaça que transportava a cana colhida e a
levava para a usina. Queimávamo-nos com aquela brasa, mas era lindo ver como
ela brilhava vermelha quando a tínhamos na mão e a assoprávamos; ele era capaz
de contar tudo o que via e vivia, tudo com detalhes miúdos a nosso tio quando
ele nos perguntava: - que andaram fazendo hoje? Se lhe deixassem, era capaz de
contar até que ao cavalo do capataz faltava uma ferradura.
Chegou o tempo em que já não
podíamos contar tudo aos outros. Só podíamos ver, viver e guardar, sabe-se lá
para quando possível fazer o quê! Acompanhei-o em suas incursões ao subterrâneo,
mudava-me com ele para lá constantemente; enquanto isso, tornava-se cada vez
mais difícil gostar do que não estava lá, a menos que fossem histórias, que
fossem fantasias, que fossem ao menos fotos, ou até diálogos espreitados do
alheio, mesmo que fossem coisas incompreensíveis; mais uma vez, quem sabe, para
guardar na parede da memória e poder um dia ir lá buscar e usar de alguma forma...
Hoje, ele parece sentir-se
bem eliminando aqueles que um dia lhe estiveram por perto. “Arre”, costuma
dizer, “por que pai e mãe vivem tanto?! E irmão e irmã, têm mesmo que ficar a
ciscar por perto a querer saber de tudo, a querer ajudar, a visitar? E os
amigos parecem pensar que a disponibilidade que não cobro é a que devo dedicar”.
Antes de ver o belo e o agradável, elege o feio. Parece só ter olhos para
aquilo que destoa, que não combina, que não casa; mesmo assim, ainda lhe admiro
um senso de humor ferino, cáustico e uma rejeição
assumida à miséria vocabular alheia que me chama as risadas; uma franqueza
rascante que só após uns meses o alvo terá conseguido assimilar. E perdoar. Fácil
reconhecer-lhe momentos de brilhantismo, mormente quando escreve, mas nunca fui
capaz de lhe perdoar o menosprezo.
Nenhum amigo histórico,
daqueles capazes de fazer perguntas antigas... aliás, perguntas antigas são o
seu nome; sua memória, por vezes constrangedora, aética e despudorada atrai
revides nunca compreendidos.
Quando os sessenta anos
sobrevêm, é impossível manter-se longe de manias, arrufos e antipatias. Magoar
sim; desculpar-se, difícil. Chegar aos sessenta sem um amor histórico, sem
testemunhos vivos e verdadeiros é como esconder-se para sempre sob a carapaça que
se vai vestindo aos poucos e que, de repente, já não pode ser retirada...
Oswaldo Lucas-Jr
30 nov 2012