“Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco
de razão na loucura.”
Friedrich Nietzsche
O saudosismo só deveria existir se ele
se baseasse em algo realmente concreto, palpável ou relevante. Quando não
acontece, sente-se falta apenas de um completo vazio que confirma o estado
ilusório em que alguém ou algo se encontra. Conheci alguém que vivia em tal
estado. Sentia saudade de detalhes que, em contexto geral, não deveriam nem ser
lembrados. Recebi-o muitas vezes em casa para conversas agradáveis até certo
ponto. Ora, como amigo eu não poderia suportar ver alguém que tanto estimava
vivendo em mundo paralelo ao meu.
Nutria uma paixão por alguém que lhe retribuíra
os sentimentos apenas até que aquilo lhe continuasse conveniente. Carlos viveu
momentos angustiantes demais e eu não conseguia compreender o porquê de tanto
sofrimento; para mim era apenas uma questão de praticidade. Se você vive coisas que não estão te fazendo
bem, livre-se delas! Talvez fôssemos mais felizes se conseguíssemos
praticar isso, mas há quem diga que se assim fosse não haveria amor. Qual é a
ideia de amor que as pessoas têm? Seria a ideia de amor ultra-romântico do
século XIX, aquele pautado em melancolia, sofrimento e solidão, aquele amor que
nunca se realiza?
Eis uma novidade para quem assim pensa:
aquele amor que não se realizava nada mais era do que uma opção do próprio
autor. Sim, muitos deles nunca viveram amores tais. Era tudo apenas idealizado.
Mas claro que isso é magnífico! Eu mesmo sou um completo fã do mal do século.
Não acredita? Mas é a mais pura verdade... é o que mais leio em minha vida e
acho fantástico! Porém, sejamos pragmáticos, é algo para nosso deleite e não um
modelo de vida. Eu, honestamente, não gostaria de me sentir preso a algo que
não existe. Sou real, meus sentimentos também e as pessoas ao meu redor mais
ainda. Mas esse sou eu, meu amigo não...
Pois bem, certo dia chegou a minha casa
com uma cara tão lívida que pensei tivesse visto alguma assombração pela rua. Depois
que externou o problema, passei a preferir que algum fantasma lhe tivesse
surgido! Estava há dois dias sem comer porque sua “Dulcinéia” resolvera aceitar
o pedido de casamento de outro senhor. Perguntei que mal havia nisso e ele
irritou-se comigo. Ainda bem que estava sem comer, consequentemente fraco, do
contrário me acertaria com a bengala. Em que estado deplorável esse tipo de
amor deixa um homem... tinha agora um amigo metido a “Dom Quixote” e eu jamais
quis ser o “Sancho Pança”. De qualquer forma não posso culpar de todo a moça.
Ela sempre deixou claro suas intenções para com meu amigo: ser flertada e
elevar seu próprio ego, sem que para isso precisasse aceitar aquele homem como
marido. Meu pobre amigo sim, tem maior culpa; um tolo, conseguiu deixar-se
envolver por algo tão sem necessidade. A questão é que alguém disse que “o amor
é um sentimento involuntário, não pode ser evitado”. Tudo bem, não serei o
velho ranzinza que esperam, há aí certa verdade, mas esse amor apenas acontece
quando as coisas estão se encaminhando da melhor maneira possível, eu poderia
dizer o mesmo de meu amigo? Talvez ainda não, mas continuemos a história. Assim
sofreu por muito tempo, meu ingênuo amigo, mas não demorou a ficar feliz, não
ainda.
Depois
de rejeitada por seu pretendente, por motivos até hoje suspeitos, Lúcia, nossa
falsa “Dulcinéia”, passou a servir de sombra para Carlos que, sem nenhuma
hesitação a aceitou de pronto. O casamento foi como ela bem quis, espalhafatoso
como um pavão; sim, acho o pavão um animal muito brega.
A
“Dulcinéia” virou “Inês Pereira” ao casar com o “asno”. Para quem nunca leu o
auto, Inês Pereira preferiu casar com um homem “discreto, que sabia tanger a
viola” a casar com um bom e rico fazendeiro por ele ser um homem simples do
campo. Teve um infeliz casamento, mas, para sua felicidade o marido morreu na guerra.
Ela casou então com seu primeiro pretendente, mas, traía-o de forma descarada e
proferia o seguinte dístico que virou tema da obra: “mais vale asno que me
carregue, do que cavalo que me derrube.”. Desse modo, ela passou de “Dulcinéia”
para “Inês Pereira” e meu amigo, de “Dom Quixote” para “Pero Marques, o asno” e
eu, graças ao bom Deus, não serei mais o “Sancho Pança”.
O
desenrolar da história deu-se de forma natural. Ele era o bom e atencioso
marido como também ela; por trás daqueles olhos traiçoeiros isso era evidente.
Ia trabalhar todos os dias enquanto a jovem punha outro em seu lugar. Isso não
era motivo para surpresas, nem para mim, nem para a vizinhança. Uns sentiam dó
de meu amigo, outros o achavam motivo de chacota, eu tinha por ele, nesse caso,
um pouco dos dois. Deixei-o passar pela humilhação de ter sua vida exposta de
forma tão negativa por algum tempo. Talvez não seja a melhor pessoa para
julgar, mas achei conveniente que passasse por isso, já que não ouviu o bom
senso e nem a mim, que sempre o estimei.
Um
dia, porém, resolvi acabar com a alegria daquela criatura pérfida a quem ele
chamava de esposa. Tramei um plano. Escrevi um bilhete para ela como sendo seu
amásio, marcando encontro em uma cabine de fotografia. Fiz o mesmo com o rapaz.
Reuni o maior número de pessoas indignadas com a situação e fomos a um local
próximo àquele do encontro dos amantes. Como se tratava de uma cabine móvel,
derrubá-la seria coisa muito fácil. Pedi que chamassem meu amigo alegando ser
algo sério e que necessitava de sua presença. Sendo ele homem muito solícito e
atencioso, aceitou o chamado e foi ao meu encontro. Ao chegar, viu muitas
pessoas e passou algum tempo sem entender o que estava acontecendo; enquanto
isso, sua esposa prevaricava na cabine fotográfica, mas isso duraria pouco
tempo. Alguns jovens orientados previamente por mim derrubaram a cabine expondo
os namorados a meu amigo e a praticamente toda a cidade. Carlos ficou em choque,
naturalmente; mas conseguiu reunir coragem para enxotar aquela mulher de sua
casa e de sua vida. Como todos ofereceram solidariedade a ele, o sofrimento
maior deu-se apenas pela decepção amorosa. Eu estava feliz por ter ajudado meu
amigo a se livrar dela e por acreditar que ele agora poderia refazer sua vida e,
quem sabe até casar-se novamente.
Percebi
meses depois que meu amigo continuava a amar aquela mulher e que a trocara pela
única coisa que acalenta os que sofrem: o gim. Faliu, iniciou uma busca
incessante por um tesouro, lutou contra piratas de sua mente e eu termino essa
narrativa apresentando-me: muito prazer, meu nome é Sancho.
Letícia Menezes
Abril de 2012