“Eu
me sinto um estrangeiro, passageiro de um trem que não passa por aqui”.
ENGENHEIROS DO HAWAII
JÁ SE TORNOU PROVERBIAL,
entre seus amigos, sua aversão a quem não conhece. Se de classe social inferior
e, principalmente, não havendo da parte dele nenhum interesse sexual, então bye, bye, so long, farewell. Mas
acontece de ele se deixar levar. Assim é Pedro.
No feriadão da semana santa,
topou ir com seu amigo Augusto a Peixinhos, ali perto, visitar Joab. Ele estava
mesmo querendo conhecer esse cabra de quem Augusto tanto vinha falando.
Peixinhos é aquele subúrbio feioso
onde tudo é mal-acabado e poeirento ou lamacento, ao sabor da estação. E onde
um dia já houve um famoso matadouro. Basta uma olhada geral por lá para
perceber que se trata de um, como diz minha mãe... buraco! A casa de Joab
ficava bem próxima à avenida principal, a Presidente Kennedy. A rua era um
amontoado de casas feias, mal cuidadas e pintadas com cores berrantes, algumas
com primeiro andar. Não entendo, mas pobre parece adorar um primeiro andar. Não
havia quase calçadas, a rua era descalça, esburacada e no ar um cheiro fétido de
esgoto correndo a céu aberto, lama; gente feia aos montes andando na rua e
aparelhos de som postos na calçada bradando Banda Lapada, Top 10 e quetais
compunham a cena. Assustador o quadro? O pior ainda estava por vir...
Joab é um misto de músico e
cozinheiro, que presta serviços eventuais a Augusto, fornecedor de refeições a
pequenas empresas. Homem de pouco mais de 40 anos, Joab é um tipo gordo, gay
efeminado e um tanto descuidado consigo, ou talvez fosse isso ocasional, já que
era feriado, e ele estava, afinal, em casa, à vontade.
Sua casa, segundo
informações dele próprio, fora construída num terreno herdado de seus pais; no
mesmo terreno, havia mais duas casas contíguas, a principal era a dele, onde
morava sozinho, a seguinte era a de um irmão, também gay e, na última, morava
uma irmã com marido e filhos.
Pedro e Joab deram-se bem, Joab
era homem simpático, delicado, que falava baixinho e que já sabia de Pedro e de
suas antipatias gratuitas. Sua casa, pequeniníssima e tipicamente arrumada no
estilo das casas de subúrbio, com sofás de forro colorido, um daqueles bares
horrorosos com copos dependurados, um televisor imenso e telhado de brasilit com teto não estucado, o que
deixava a casa quente, àquela hora bem próxima do inferno. E estava, por sinal,
imunda; Pedro torcia o nariz por ver sujeira por toda parte, a pia da cozinha
com pilhas de pratos e panelas e copos e talheres, restos de comida; lixeira
cheia até a borda. Mas claro que tudo isso passava fácil, fácil diante de toda
aquela simpatia do anfitrião.
Lá, tomaram algumas
cervejas, conversaram amenidades, e o que se sobressaiu daquele papo, à
percepção de Pedro, sujeito crítico contumaz, foi a maneira como os dois,
Augusto e Joab, se tratavam. Muito diferente do que acontecia entre ele e o
próprio Augusto. Aqueles dois nem falavam o nome um do outro, era “frango” para
cá, “viado” para lá e até “arrombado”. Esquisito e desagradável? Sim, mas Pedro
estava se esforçando para se divertir e creditava tudo aquilo ao exotismo das relações
gay naquele meio.
Pedro parece carregar consigo
uma curiosidade enorme acerca das coisas e das pessoas... sempre a querer saber
tudo; que idade a pessoa tem, sua origem, se ela tem um amor, se a casa onde
mora é própria... e isso, que sempre vem naturalmente, às vezes parece não ter
fim, a menos que o interlocutor demonstre aborrecimento e veja nisso uma
invasão; aí, ele sempre tem fairplay
para entender e parar. Outro dos riscos que corre é o de monopolizar a conversa,
já que é espirituoso, divertido e centralizador. Mas, ou o anfitrião estava
determinado a conquistá-lo ou o nível de álcool no juízo dele
já ia alto, o fato é que teve paciência e lhe respondeu a tudo.
Bem, como os dois, Augusto e
Joab, estavam satisfeitos com aquela aparente aceitação de Pedro acerca de tudo
até ali, propuseram esticar aquele encontro: “Que tal irmos à casa de Francine”?
Propôs Joab. Francine? Pois é, reside aí a parte punk da história...
Ela, a Francine, morava três
ou quatro casas além e, quer saber? Não teria sido uma perda passar aquela
tarde sem a conhecer... Ela morava numa casa bem maior e melhor equipada do que
a de Joab. Esperava-os com uma mesa na calçada. Com ela, algumas pessoas de sua
família que também lá moravam. O marido, um inexpressivo, que ela tratava aos
gritos; um filho, a mulher deste e umas cinco crianças, que exibiam orgulhosas
os ovos de Páscoa que haviam ganhado. Um aparelho de som estridente reproduzia
algo no estilão que parecia imperar por ali.
Francine era mulher muito
fraca de beleza, um tipo bonitinha de longe. Baixinha, cerca de 55 anos,
branca, magra e mal desenhada. Cabelos pretos “na cor da asa da graúna”,
desdentada e desbocada. Falava alto demais num dialeto e num ritmo difíceis de
acompanhar, dava ordens a todos aos gritos e era acatada de pronto. Insistia
para que bebessem e comessem do que ela servia. Pedro até beliscou de algo que
parecia ser uma caldeirada. Não gostou, mas foi delicado e elogiou, como sua
mãe ensinara a fazer e como caberia num ambiente tão... punk. Seu amigo Augusto
olhava-o e parecia rir-se dele, pois bem sabia dos incômodos que estava a
passar. Ele precisou ir ao toalete e, assim, pôde observar o interior da casa.
Sala despojada, cozinha limpa, banheiro sujo; e lá, algumas falhas para as
quais não há perdão: vaso sanitário sem tampa, ausência de papel higiênico e a
presença de um daqueles odiosos baldes plásticos para se pôr o papel usado.
Como antes Pedro estivera dentro
da casa de Joab e ali ele estava na calçada, pôs-se a observar o entorno. Só
havia homens na rua. Uma esquina estava permanentemente movimentada. Carros que
paravam e seguiam. Um homem que estava nessa esquina chamou-lhe a atenção, era
um cadeirante muito jovem e bonito, sua pele era de um branco encardido e suas
pernas eram fininhas. Levava, preso à cadeira, um coletor de urina. Pedro se
Interessou por saber o que lhe havia tirado os movimentos das pernas.
Um preto efeminado com os
dedos das mãos cheios de anéis, empregado de Francine, que chegara à mesa e a
quem todos tratavam como frango, disse-lhe que o rapaz levara um tiro em
perseguição da polícia. Era traficante. Ficou claro então todo aquele movimento
na esquina de carros que paravam e seguiam... ali rolava tráfico de drogas. Pedro
se assustou ao perceber também a promiscuidade social que imperava ali, pois
mais tarde o cadeirante e outros que com ele estavam atravessaram a rua e
vieram beber numa mesa que Francine providenciara, junto à dele. Estar naquele
ambiente com traficantes de drogas bem do lado não era exatamente um conforto, não
estivesse já embriagado de tanto “litrão” de cerveja, teria sido aquele o
momento de ele ir embora.
Aventureiro na juventude, Pedro
curtira drogas e se relacionara facilmente com todos; vira-se nesse tempo, aqui-acolá,
em ambientes e situações como aquela, que lhe alimentavam a curiosidade e lhe abasteciam
a vida de aventuras. Às vezes, até preferia estar em meios tais a estar em
casa, onde era observado por olhos policiais. Hoje, já maduro e as drogas não
mais representando um atrativo, ver-se naqueles ambientes só podia mesmo servir
para impor certo controle sobre essa sua parca tolerância, além de povoar seu
entorno, hoje tão carente de gente.
O pior é que, com seu
esforço de simpatia, de verdade Pedro agradou, e a Francine já andou comentando
com seu amigo Augusto que quer ir à casa dele...
Oswaldo Lucas-Jr.
maio, 2012