De nosso amor e loucura...

Alguns de nós, eu inclusive, já vimos acalentando a ideia de criar este blog. Fazemos, de certo, parte de um grupo que não se entende como apenas professor, pessoas que criam contos, crônicas, novelas e têm receios de expor suas produções. Somos loucos... loucos pelo ócio mais trabalhoso que existe: escrever Utilizamos as palavras de Clarice Lispector para definir nossa loucura... "Escrevemos porque somos desesperados e estamos cansados, não suportamos mais a rotina de nos ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, nós nos morreríamos simbolicamente todos os dias."

quinta-feira, 22 de março de 2012

Uma Tarde Punk



“Eu me sinto um estrangeiro, passageiro de um trem que não passa por aqui”.
ENGENHEIROS DO HAWAII

JÁ SE TORNOU PROVERBIAL, entre seus amigos, sua aversão a quem não conhece. Se de classe social inferior e, principalmente, não havendo da parte dele nenhum interesse sexual, então bye, bye, so long, farewell. Mas acontece de ele se deixar levar. Assim é Pedro.
No feriadão da semana santa, topou ir com seu amigo Augusto a Peixinhos, ali perto, visitar Joab. Ele estava mesmo querendo conhecer esse cabra de quem Augusto tanto vinha falando.
Peixinhos é aquele subúrbio feioso onde tudo é mal-acabado e poeirento ou lamacento, ao sabor da estação. E onde um dia já houve um famoso matadouro. Basta uma olhada geral por lá para perceber que se trata de um, como diz minha mãe... buraco! A casa de Joab ficava bem próxima à avenida principal, a Presidente Kennedy. A rua era um amontoado de casas feias, mal cuidadas e pintadas com cores berrantes, algumas com primeiro andar. Não entendo, mas pobre parece adorar um primeiro andar. Não havia quase calçadas, a rua era descalça, esburacada e no ar um cheiro fétido de esgoto correndo a céu aberto, lama; gente feia aos montes andando na rua e aparelhos de som postos na calçada bradando Banda Lapada, Top 10 e quetais compunham a cena. Assustador o quadro? O pior ainda estava por vir...
Joab é um misto de músico e cozinheiro, que presta serviços eventuais a Augusto, fornecedor de refeições a pequenas empresas. Homem de pouco mais de 40 anos, Joab é um tipo gordo, gay efeminado e um tanto descuidado consigo, ou talvez fosse isso ocasional, já que era feriado, e ele estava, afinal, em casa, à vontade.
Sua casa, segundo informações dele próprio, fora construída num terreno herdado de seus pais; no mesmo terreno, havia mais duas casas contíguas, a principal era a dele, onde morava sozinho, a seguinte era a de um irmão, também gay e, na última, morava uma irmã com marido e filhos.
Pedro e Joab deram-se bem, Joab era homem simpático, delicado, que falava baixinho e que já sabia de Pedro e de suas antipatias gratuitas. Sua casa, pequeniníssima e tipicamente arrumada no estilo das casas de subúrbio, com sofás de forro colorido, um daqueles bares horrorosos com copos dependurados, um televisor imenso e telhado de brasilit com teto não estucado, o que deixava a casa quente, àquela hora bem próxima do inferno. E estava, por sinal, imunda; Pedro torcia o nariz por ver sujeira por toda parte, a pia da cozinha com pilhas de pratos e panelas e copos e talheres, restos de comida; lixeira cheia até a borda. Mas claro que tudo isso passava fácil, fácil diante de toda aquela simpatia do anfitrião.
Lá, tomaram algumas cervejas, conversaram amenidades, e o que se sobressaiu daquele papo, à percepção de Pedro, sujeito crítico contumaz, foi a maneira como os dois, Augusto e Joab, se tratavam. Muito diferente do que acontecia entre ele e o próprio Augusto. Aqueles dois nem falavam o nome um do outro, era “frango” para cá, “viado” para lá e até “arrombado”. Esquisito e desagradável? Sim, mas Pedro estava se esforçando para se divertir e creditava tudo aquilo ao exotismo das relações gay naquele meio.
Pedro parece carregar consigo uma curiosidade enorme acerca das coisas e das pessoas... sempre a querer saber tudo; que idade a pessoa tem, sua origem, se ela tem um amor, se a casa onde mora é própria... e isso, que sempre vem naturalmente, às vezes parece não ter fim, a menos que o interlocutor demonstre aborrecimento e veja nisso uma invasão; aí, ele sempre tem fairplay para entender e parar. Outro dos riscos que corre é o de monopolizar a conversa, já que é espirituoso, divertido e centralizador. Mas, ou o anfitrião estava determinado a conquistá-lo ou o nível de álcool no juízo dele já ia alto, o fato é que teve paciência e lhe respondeu a tudo.
Bem, como os dois, Augusto e Joab, estavam satisfeitos com aquela aparente aceitação de Pedro acerca de tudo até ali, propuseram esticar aquele encontro: “Que tal irmos à casa de Francine”? Propôs Joab. Francine? Pois é, reside aí a parte punk da história...
Ela, a Francine, morava três ou quatro casas além e, quer saber? Não teria sido uma perda passar aquela tarde sem a conhecer... Ela morava numa casa bem maior e melhor equipada do que a de Joab. Esperava-os com uma mesa na calçada. Com ela, algumas pessoas de sua família que também lá moravam. O marido, um inexpressivo, que ela tratava aos gritos; um filho, a mulher deste e umas cinco crianças, que exibiam orgulhosas os ovos de Páscoa que haviam ganhado. Um aparelho de som estridente reproduzia algo no estilão que parecia imperar por ali.
Francine era mulher muito fraca de beleza, um tipo bonitinha de longe. Baixinha, cerca de 55 anos, branca, magra e mal desenhada. Cabelos pretos “na cor da asa da graúna”, desdentada e desbocada. Falava alto demais num dialeto e num ritmo difíceis de acompanhar, dava ordens a todos aos gritos e era acatada de pronto. Insistia para que bebessem e comessem do que ela servia. Pedro até beliscou de algo que parecia ser uma caldeirada. Não gostou, mas foi delicado e elogiou, como sua mãe ensinara a fazer e como caberia num ambiente tão... punk. Seu amigo Augusto olhava-o e parecia rir-se dele, pois bem sabia dos incômodos que estava a passar. Ele precisou ir ao toalete e, assim, pôde observar o interior da casa. Sala despojada, cozinha limpa, banheiro sujo; e lá, algumas falhas para as quais não há perdão: vaso sanitário sem tampa, ausência de papel higiênico e a presença de um daqueles odiosos baldes plásticos para se pôr o papel usado.
Como antes Pedro estivera dentro da casa de Joab e ali ele estava na calçada, pôs-se a observar o entorno. Só havia homens na rua. Uma esquina estava permanentemente movimentada. Carros que paravam e seguiam. Um homem que estava nessa esquina chamou-lhe a atenção, era um cadeirante muito jovem e bonito, sua pele era de um branco encardido e suas pernas eram fininhas. Levava, preso à cadeira, um coletor de urina. Pedro se Interessou por saber o que lhe havia tirado os movimentos das pernas.
Um preto efeminado com os dedos das mãos cheios de anéis, empregado de Francine, que chegara à mesa e a quem todos tratavam como frango, disse-lhe que o rapaz levara um tiro em perseguição da polícia. Era traficante. Ficou claro então todo aquele movimento na esquina de carros que paravam e seguiam... ali rolava tráfico de drogas. Pedro se assustou ao perceber também a promiscuidade social que imperava ali, pois mais tarde o cadeirante e outros que com ele estavam atravessaram a rua e vieram beber numa mesa que Francine providenciara, junto à dele. Estar naquele ambiente com traficantes de drogas bem do lado não era exatamente um conforto, não estivesse já embriagado de tanto “litrão” de cerveja, teria sido aquele o momento de ele ir embora.
Aventureiro na juventude, Pedro curtira drogas e se relacionara facilmente com todos; vira-se nesse tempo, aqui-acolá, em ambientes e situações como aquela, que lhe alimentavam a curiosidade e lhe abasteciam a vida de aventuras. Às vezes, até preferia estar em meios tais a estar em casa, onde era observado por olhos policiais. Hoje, já maduro e as drogas não mais representando um atrativo, ver-se naqueles ambientes só podia mesmo servir para impor certo controle sobre essa sua parca tolerância, além de povoar seu entorno, hoje tão carente de gente.
O pior é que, com seu esforço de simpatia, de verdade Pedro agradou, e a Francine já andou comentando com seu amigo Augusto que quer ir à casa dele...

Oswaldo Lucas-Jr.
maio, 2012

Um comentário:

  1. uma das melhores descrições ja feita sobre o aconchegante bairro de peixinhos.Parabéns Lucas por mais uma.

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