A
Tia Carmita
“Ah,
escrever! Deleitar-se com as próprias palavras, ou, pelo contrário,
sofrer com elas à procura de expressão própria, singular, de preferência
reconhecível pelo outro,pelos outros, pelo mundo..."
FERNANDO PORTELA
AINDA
HOJE, DURANTE O ALMOÇO, papai e mamãe falaram mais uma vez de ti. Os
comentários de sempre, tia. Teus históricos desentendimentos com Corina e de
como envelheces amarga, fofoqueira e rabugenta. Escuto esses comentários, tia,
e sempre te defendo, comentando sobre o destino cruel que a vida te reservou,
fazendo-te viver os anos da velhice eterna com a única irmã com quem nunca te
deste bem. Depois desses instantes à mesa, fiquei uns minutos a pensar em ti,
em como me alegraste a infância e na grande dívida que hoje tenho para
contigo...
Todos
na família sabem de minha boa memória e até a reverenciam; cá para nós, tia,
tenho segredos e histórias demais, sabes? Mas só agora, aos poucos, venho dando
o devido valor a isso e tentando pôr tudo em texto. Nessas lembranças, tu estás
bem presente e me sinto, sinceramente, em débito contigo, meio culpado por não
te dar, hoje, a assistência de que precisas... ir a tua casa para conversarmos
um pouco sobre os anos de minha infância, que foram também os anos de tua
juventude, teus anos como professora... conversar contigo sobre vovô, um homem
pouco amoroso, mas de tantas palavras... lembrar contigo das viagens que eu e
ele fazíamos, de trem, a Água Branca e a Palmares para visitar os irmãos
dele... acho que isso faria bem também a mim, sabes? Mas acho que, para tua
tristeza, vou continuar a te dever isso, tia.
Pois
é, lembro bem de tudo isso; tio Bernardo, Água Branca, tia Nana, Palmares,
lembro a guerra que era para vovô convencer papai a autorizar essas minhas
viagens com ele. E até a estranheza de todos por eu, já àquele tempo, aos 4
anos, topar essas empreitadas sem choro nem saudade.
Foste
nossa professora de catecismo, há teus dedos em tudo o que se relaciona a nossa
primeira comunhão, minha e de Flavinha. Naquele tempo, papai e mamãe não eram
os carolas que são hoje, de maneira que intercedeste em tudo, na cerimônia, nas
roupinhas brancas, nos livrinhos, nos terços, santinhos, nas velas e no
café-da-manhã que foi oferecido à família nos jardins de nossa casa na
Imbiribeira. Hoje, mamãe lamenta não haver sabido incutir religiosidade em
nenhum dos três filhos. Três hereges, como ela mesma diz.
Acho
que tua presença em minha vida começou a se fazer forte quando nos mudamos da
Imbiribeira para a Boa Vista, quando ascendemos socialmente. Papai e mamãe
nunca tiveram espírito de carnaval, nem de são João, mas tu nos levavas, a mim
e a Flavinha, às matinês de carnaval do Clube Português, eu fantasiado de Bat
Masterson (no velho oeste ele nasceu...) com fraque, cartola, bengala, um
saquinho de confete e serpentina e um tubo de lança-perfume. E aos arraiais do
Sítio da Trindade. E à Festa da Mocidade. E era sempre difícil a autorização de
papai para que fôssemos contigo, o que só reforçava tua participação nessas
empreitadas. Rominho, que era muito pequeno, jamais quis fazer parte da companhia,
era agarrado demais às saias de mamãe. Ele nunca soube o que perdia, pois eras
generosa e nos cobrias de mimos... refrigerantes, salgados e quetais. Segundo
papai, tu nos “estragavas”. Verdade que os programas não eram todos de
diversão, havia as procissões. Eu e Flavinha te acompanhávamos com velas acesas
a cantar “ave, ave, ave Maria...”
Houve
muitas tardes em que mamãe não tinha com quem nos deixar e o motorista de papai
nos deixava, os três, contigo, na casa de vovô. Eram ainda anos 60 e vovô era
vivo. Chiquinho estava sempre ausente e Corina, que nunca escondeu não gostar
de criança, sofria, coitada, com aqueles pirralhos intocáveis a mexer em suas
tampas de pasta dental e em seus arames. Tu nos contavas historinhas, que
sempre agradavam mais a mim do que a Flavinha. Acho que já àquele tempo minha
mente aplaudia essas “viagens” e a de Flavinha, mais ligada no concreto,
reclamava.
Mas
não são só prazerosas as lembranças, tia... lembro de duas passagens que
ficaram gravadas na parede da minha memória: uma, de grande repercussão em mim,
e outra, de repercussão coletiva.
A
de grande repercussão em mim foi o desentendimento ocorrido entre papai, sempre
irascível e defensor zeloso de suas crias e tio Joaquim (que o bom Deus o
tenha). Nunca me foi revelado o que realmente acontecera, mas eu era um garoto
esperto e, sendo o assunto eu mesmo, seria difícil eu passar ao largo dele, né
não? O que me sobrou aos ouvidos foi que tio Joaquim havia comentado com tio Geraldo
(que o bom Deus também o tenha) que eu era o rejeitado de nossa família e que
tudo o que havia de melhor ficava para Flavinha e Rominho. Isso nos afastou da
casa de vovô, já que o chatoso do tio Joaquim, como deves lembrar, de volta de
Niterói e desempregado, estava acampado lá. E seus móveis, guardados em nossa
garagem. O acontecimento entristeceu muito vovô. E foi tua interferência, somada
à de vovô, que trouxe a paz de volta à família. Mas as reverberações disso em
meu juízo de criança perduraram...
A
outra passagem, nada feliz para ti, foi a grande cheia de 1964, que pegou a
todos de surpresa e acabou com tudo o que havia na Idalina Pontes 45. Na
mente de uma criança não há muito espaço para tristeza, assim, a cidade
sucumbia à água e à lama e eu me divertia com tudo... com a casa cheia de
gente; com a rua Tabira, onde morávamos, que era ladeira, com água até a
metade. Lembras que morávamos na metade alta; com a movimentação na rua, no quartel...
Ficaste um tempo lá conosco, tu e Chiquinho. A festa maior, além de tua
presença, era folhear teus livros e os de vovô, molhados e enlameados secando
ao sol, à procura de dinheiro. Tinhas então o hábito de poupar dinheiro
guardando as notas entre as páginas dos livros. Já havias dito: “o dinheiro
será de quem achar”. E achávamos mesmo... Ainda hoje sinto aquele cheiro de
caranguejo uçá que vinha daquele rescaldo da cheia em nosso quintal.
Não
encontro em mim, tia, paciência e tolerância para lidar com a família, sabes?
Triste isso? Talvez seja apenas resultado de algo em que nunca mexi muito,
apenas ensaiei, nos processos terapêuticos em que me vi envolvido. Amo meus
pais, mas não tenho o menor interesse em chegar mais perto deles
psicologicamente; mas nunca, na verdade, tivemos tal proximidade. Seria um
esforço imenso, para mim, fazê-lo acontecer agora. Como nunca trabalhei com
afinco essas minhas relações parentais, ainda hoje sinto bem vivas as repulsas
que minhas propriedades lhes causavam e é possível que acabe, de repente, revidando
essas repulsas do passado.
Minha
irmã, que haverá de ser um capítulo à parte dessas memórias, foi personagem
apagada de minha infância, distante a partir de minha juventude e hoje não
seria exagero dizermo-nos antípodas. Rominho, a histórica incógnita, ficou
marcado para sempre como o dedo-duro que detonou a maior crise de minha vida;
hoje, ele é aquele exemplo de irmão oficial com quem jamais saberei até onde
poderei contar... bom, mas também eu não sou um exemplo de disponibilidade...
Pois
é, tia, não sou bem um homem amoroso com a família e, a essa altura, já nem
quero entender como, nem por quê.
Acostumei-me
a não ser o que de mim se esperava; a ser aquele de quem pouco se sabia. Um
ausente de todos. Um esquisito. E também a ser o contrário disso tudo no mundo
lá fora. Eu achava, sinceramente, que não tinha que “fazer parte da companhia”,
o que legitimava, para mim, essa ausência de tudo e de todos...
Mais de uma vez ouvi comentários em casa,
sempre de mamãe, surpresa, ao ouvir opiniões a meu respeito, opiniões que me
revelavam a ela um homem divertido, comunicativo e de
conversa fácil. Aí, ela dizia: “acho que tenho um filho que ainda não
conheço...”.
Saibas,
tia, que esse mea culpa, é o meu
esforço para te fazer crer em meu amor.
Um
cheiro, tia.
Abril de 2010
relembrar é viver Lucas.
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